Como parte da programação cultural do Estado de Pernambuco para a Semana da Consciência Negra, o Museu de Arte Contemporânea de Olinda hospedou o evento conhecido como Cozinha: consciência negra das artes na contemporaneidade, organizado pela 3ecologias.net, com apoio da Fundarpe, e curadoria de Mãe Beth de Oxum, Edson Barrus e Ricardo Ruiz: interlocutor que aqui vos escreve. O evento trazia em seu cerne a ocupação do museu como convívio entre artistas e público, contemporâneos em seu tempo e em sua ação no universo estético, político e social. Buscava atrelar atuações supostamente distintas sob uma mesma lona: batuqueiros, capoeiristas, cientistas, tecnólogos, músicos, bailarinos, artistas plásticos e visuais. As ações, discussões e apresentações do evento tinham como fio condutor o milenar ato de cozinhar – inegável arte tão atrelada com a cultura de matriz africana e sua miscigenação na diáspora brasileira. Esse texto é uma breve reflexão sobre o festival e suas relações no campo da arte, da política e dos afetos.
Occuppy WallStreet – Ocupe seu quintal
Occupy Wall Street (Ocupe Wall Street), ou OWS, é um movimento de protesto contra a desigualdade econômica e social, a ganância, a corrupção e a indevida influência das empresas – sobretudo do setor financeiro – no governo dos Estados Unidos. Foi iniciado em 17 de setembro de 2011, no Zuccotti Park, distrito financeiro de Manhattan, em Nova Iorque. Esses protestos foram convocadas pela revista canadense de arte e
culture jamming Adbusters, inspirando-se nos movimentos árabes pela democracia, especialmente nos protestos na Praça Tahrir, no Cairo, que resultaram na Revolução Egípcia de 2011
1. Concomitante com Nova Iorque, a ocupação também se deu na cidade de Londres, capital do Reino Unido
2. Posteriormente surgiram outros movimentos Occupy por todo o mundo, reunindo no total mais de 200 mil pessoas pelo planeta em manifestações de longa duração em diversos centros econômicos e pela internet – onde teve o suporte do grupo ciberativista
Anonymous.
No site occupywallst.org,o OWS é descrito como um movimento de resistência, sem liderança:
“com pessoas de muitas cores, gêneros e opiniões políticas. A única coisa que todos temos em comum é que nós somos os 99% que não vão mais tolerar a ganância e a corrupção de 1%. Estamos usando a tática revolucionária da Primavera Árabe para alcançar nossos fins e encorajar o uso da não violência para maximizar a segurança de todos os participantes. Este movimento dá poder a pessoas reais para criar uma mudança real, de baixo para cima. Queremos ver uma assembleia em todo quintal, toda esquina, porque nós não precisamos de Wall Street e não precisamos de políticos para construir uma sociedade melhor.”
O termo ocupação também é amplamente usado no campo artístico em eventos que intentam provocar um contexto criativo em que a união de iniciativas possa não somente impactar culturalmente, mas que ao mesmo tempo permita a reflexão sobre os seus meios de produção e as linguagens neles adotadas. A ideia de um convívio coletivo entre artistas e público durante ocupações – sendo essas ações artísticas
deocupações bem como ações artísticas
em ocupações; ou ainda,
ocupações como obras de arte em si – também alcança uma boa gama de festivais, convívios, seminários e oficinas.
3 Até mesmo a Funarte – Fundação Nacional para as Artes – possui editais públicos dedicados à ocupação de seus equipamentos culturais.
Culinária como roteiro
No site do evento aqui analisado, salienta-se a citação da Michel de Certeau:
“Os hábitos alimentares constituem um domínio em que a tradição e a inovação tem a mesma importância, em que o presente e o passado se entrelaçam para satisfazer a necessidade do momento, trazer a alegria de um instante e convir às circunstâncias”
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Além, no texto de apresentação o festival define-se como um
“Laboratório de vivências em arte contemporânea, tecnologias e culturas livres. Espaço para a memória múltipla, a inteligência programadora, a receptividade sensorial. A engenhosidade que cria artifícios, a capacidade inventiva da mini estratégia. O improviso. A inteligência do bem comum. A arte de cozinhar para todos. De todas as crenças, raças e amores.”
Michel de Certeau, na sua clássica análise dos bairros do centro histórico de Paris para o Ministério da Cultura Francês, mostrou a importância que a culinária do cotidiano e as táticas desenvolvidas por suas cozinheiras são um patrimônio parisiense, tão rico quanto as edificações do século XVI. Mais envolvente quanto suas comidas – ato de amor e de expressão – eram os afetos e efeitos da cartografia transitada por essas mulheres pela cidade em busca do melhor desconto, do melhor ingrediente. Associando-os ao ato de escrever, e como consequência, construir uma linguagem própria, acreditava que eram nesses atos simples – o que ele definia como as “Artes de fazer”: morar, cozinhar, transitar – que o ser humano se tornava capaz de criar subjetividades, potencializar sua existência e, o mais importante, reorganizar a ordem estabelecida através de seus próprios hábitos. Os verdadeiros movimentos de rebeldia estavam no dia a dia.
O GIA – Grupo de Interferência Ambiental é um coletivo de arte contemporânea que há 16 anos atua no mundo todo a partir de seu Quartel General em Salvador, Bahia. Dentre suas inventivas ações performáticas no espaço público, salientamos os pic-nics sob viadutos e a intervenção Gia cozinha pra você, em que ocupam museus e centros culturais com saborosas obras de arte. Em seu catálogo, expressam:
Aleatoriedade, humor e reflexões a respeito da vida cotidiana e suas singularidades: talvez esses sejam pontos chaves do GIA, coletivo artístico que foge a qualquer tentativa de definição. O grupo é formado por artistas […] que têm em comum, além da amizade, uma admiração pelas linguagens artísticas contemporâneas e sua pluralidade, mais especificamente àquelas relacionadas à arte e ao espaço público. Pode-se dizer que as práticas do GIA beberam na fonte da arte conceitual, em que o estatuto da obra de arte é negado, em favor do processo e, muitas vezes, da ação efêmera, buscando uma reconfiguração da relação entre o artista e o público. Um dos principais objetivos do grupo é a utilização de meios que possibilitem atingir uma margem cada vez maior de pessoas, tomando de assalto o espaço público. Assim, as ações do GIA procuram interrogar as condições em que os indivíduos atuam com os elementos do seu entorno, produzindo, assim, significados sociais. E esses significados, são também, processuais, pois
segundo John Cage “o mundo, na realidade, não é um objeto, é
um processo”. O GIA, portanto, está disposto a questionar as convenções sociais sempre que possível, através de práticas concretas infiltradas em pequenas transgressões. A estética GIA, baseada na simplicidade e ao mesmo tempo irônica, procura mostrar, portanto, que a arte está indissoluvelmente ligada à vida .
É comum também em sociedades tidas como arcaicas a valorização dos hábitos alimentares ao nível ritualístico. Os povos de matriz africana não fogem à regra. No Brasil, é secular a tradição da culinária negra na organização social e religiosa do país, ao ponto do Acarajé ser considerado Patrimônio Imaterial. O cozinhar, e o ato de preparar e comer o alimento coletivamente, é um ritual que nos aproxima de nossos ancestrais e da natureza que nos cerca. É através desse ato que nos reconhecemos no que comemos, e refletimos sobre a coexistência entre homens, plantas, animais e forças da natureza num universo cósmico que lida com os sentidos da visão, do faro, do tato, do paladar e que proporciona o afeto mais compartilhado do planeta: o saciar da fome.
Olinda: ocupação e resistência cultural
Portugal e suas colônias estavam debaixo do domínio espanhol desde que Filipe II conquistara a coroa portuguesa em 1580. Somente sessenta anos depois, em 1640, Portugal se livraria de Castela e constituiria de novo um reino independente sob o governo de D. João IV. Mas o momento histórico que aqui nos interessa se desenvolveu inteiramente no contexto do Brasil ibérico.
Olinda, a capital da capitania de Pernambuco, foi conquistada pelos holandeses em fevereiro de 1630. A composição das tropas invasoras incorporava holandeses, frísios, valões, franceses, poloneses, alemães, ingleses e outros. Envolvidos na guerra contra Madri, todos se alegraram quando os “espanhóis” abandonaram as cercanias da cidade. Mesmo abonados pelo valor comercial da cana-de-açúcar brasileira e com a posição privilegiada da costa pernambucana para outras invasões no continente, essa luta dos demais reinados da Europa contra a Espanha possuía implicações profundamente religiosas. A nova ordem neerlandesa estipulava que todos os padres jesuítas e outros religiosos teriam de abandonar o país, porém afirmava a “liberdade de consciência, tanto para os cristãos como para os judeus, desde que prestassem juramento de lealdade…, assegurando-lhes que (a Holanda) não molestaria ou investigaria as suas consciências, mas que a Religião Reformada seria publicamente pregada nos templos…”
Em 1645, comandados pelo contrabandista mameluco alagoano de nome Calabar, mais de 120 mil insurretos mazombos, índios nativos e escravos negros começaram um movimento de expulsão dos holandeses europeus das terras da costa pernambucana. Os rebeldes tupiniquins fizeram os exércitos holandeses recuaram as casas-fortes do Cabo de Santo Agostinho, Pontal de Nazaré, Sirinhaém, Rio Formoso, Porto Calvo e Forte Maurício, sendo sucessivamente derrotados. Por fim, Olinda foi recuperada pelos rebeldes. Em 1646, na famosa Batalha de Tejucupapoo, mulheres camponesas armadas de utensílios agrícolas e armas leves expulsaram os invasores holandeses, humilhando-os definitivamente e instaurando os ancestrais da atual população da cidade. Posteriormente, o mesmo Calabar se associou aos holandeses contra os portugueses, conduzindo a capitania do pernambuco para a independência social de ambos os países europeus.
A história afirma que a Insurreição Pernambucana foi um marco importante para o Brasil, tanto militarmente, com a consolidação das táticas de guerrilha e emboscada, quanto sócio-politicamente, com o aumento da miscigenação entre as três raças (negro africano, branco europeu e índio nativo) e o começo dum sentimento de nacionalidade.
Além de seu passado revolucionário, Olinda é também um dos mais importantes centros culturais do Brasil. Foi declarada, em 1982, Patrimônio Histórico e Cultural da Humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura e em 2005, Olinda foi eleita a primeira Capital Brasileira da Cultura. A resistência política de negros, indígenas e mestiços propiciou uma riqueza nas artes e expressões na cidade intrinsecamente ligadas às culturas dos povos que a habitaram: Cocos, caboclinhos, frevos, sambas, maracatus, afoxés, esculturas, bonecos. Dessa forma, poderíamos até nos perder aqui em uma reflexão sobre as relações que se deram entre a resistência política e sua consequente efervescência cultural…
O Museu de Arte Contemporânea de Olinda
No folheto de apresentação do Museu, em texto de Célia Labanca, identificada como “Chefe do Museu de Arte Contemporânea” (sic), é exposto que sua sede, tombada como Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, foi construída para abrigar o Aljube da Diocese de Olinda e Recife – tendo sido a única prisão eclesiástica do Brasil. Foi usada para o recolhimento de homens e mulheres que fossem pretos, mulatos ou feiticeiros acusados de delito contra a Religião Católica Apostólica Romana. Após o período da Inquisição (1870) até 1950 o edifício continuou como cárcere, dessa vez como Cadeia Pública da Cidade de Olinda.
A ocupação dos jardins pela cozinha
Com base no que foi exposto, vamos à análise do evento em si: a ocupação, realizada entre os dias 20 e 24 de novembro de 2012, contou em sua programação com oficinas de capoeira, ritmos, robótica e rádio livre que propiciaram os mestres Quinho Caetés e Pombo Roxo nos tambores, Melque na Capoeira Angola e a transmissão da Rádio Amnésia em FM e os experimentos em eletrônica do coletivo Robô Livre. No campo expositivo, a mostra trazia obras dos artistas Thelmo Cristóvão, Heleno Neves, Jacira Lucena, Pamella Araújo, Edson Barrus. Contou com apresentações musicais do Coco de Umbigada, Zeca do Rolete e do Afoxé Ara Won Ufu Ufu; Leitura de poesias com Miró; mostra de vídeos de Yann Beauvais; debates entre artistas e gestores públicos e palestra sobre gênero e maracatu com Selma Albernaz, Doutora em Antropologia pela Universidade Federal do Pernambuco; lançamento e distribuição de publicação do observatório de mídia e religiosidade Ojuran. Teve a presença de diversos artistas do Recife e de Olinda como participantes, discutindo sobre os mais diversos temas. Caldeiradas de munguzá, pipoca e maniçoba, preparados por Mãe Beth de Oxum e Arthur Leandro – artista e Táta Kisikar’Ngomba vindo de Belém do Pará – temperavam as discussões, do descascar do coco ao saborear do alimento. Frutas e instrumentos musicais, emaranhados equipamentos de eletrônica, antiguidades e pessoas decoravam o ambiente de cores e sabores. Telepresencialmente, via internet, centenas de pessoas viam, curtiam e compartilhavam atualizações diárias das fotos e breves relatos do evento.
O folheto supracitado do Museu de Arte Contemporânea de Olinda salienta que atualmente os museus são compreendidos “(…) como instituições dinâmicas que trabalham com o poder da memória como instâncias relevantes para o desenvolvimento das funções educativa e formativa. Ainda como ferramentas adequadas para respeitarem a diversidade cultural e natural, construindo uma nova via de acesso ao futuro com mais justiça social, harmonia, solidariedade, liberdade, paz, dignidade e direitos humanos.” Acredito que aqui se deu a contribuição do festival cozinha no auxílio à instituição alcançar suas metas: contando com a visitação de diversos alunos da rede pública escolar, bem como da população circulante de Olinda, o evento fortificou a memória coletiva como meio para as funções da educação e da formação. Participou também como exímio exercício para o respeito das diversidades, buscando também, em suas práticas e reflexões, a justiça social e solidária, num ambiente harmonioso, de paz e de liberdade.
A ocupação do museu também conta com uma força simbólica inquestionável: trazer para os jardins do Cárcere racial e religioso as mais diversas formas da expressão da matriz africana, amalgamados pelas artes tecnológicas da contemporaneidade – que dão força às margens sociais graças ao poder da comunicação p2p – foi uma ação de restabelecer, mesmo que num pequeno espaço do tempo, os espaços públicos aos seus verdadeiros merecedores: o público, seja ele preto, pardo, índio, mameluco, caboclo. Pobre, rico, jovem ou idoso. Sem discriminação por parte de suas opções religiosas, sexuais, científicas e culturais. Afinal, onde come um, comem muitos.
Ricardo Ruiz
Olinda, verão de 2012/2013